A síndrome de copérnico

TRECHO 1

— E por que me lembro disso? 

— Talvez estivesse nas proximidades, o que poderia explicar os ferimentos. Ou, então, viu as imagens na televisão, elas o impressionaram e alimentaram no senhor uma crise de paranoia, no fim das contas uma coisa bastante clássica.

— Clássica? — disse eu meio ofendido.

— No quadro dos distúrbios dos quais sofre, sim. O senhor atribuiu um significado pessoal e estranho a um acontecimento real do qual, no entanto, não participou. As crises de esquizofrenia paranoide constantemente dão a impressão ao sujeito de que ele está no centro do mundo, diante de acontecimentos que não parecem aleatórios e que exprimem para ele uma lógica bem precisa...

Como eu li há pouco...

— Em resumo, as coisas que imaginei não são surpreendentes numa pessoa afetada pela esquizofrenia?

— É um distúrbio bem comum. O senhor se colocou no centro desse excepcional acontecimento, como se fosse o sujeito principal. Como se fosse o centro da atenção do mundo inteiro. E quando esse tipo de distúrbio é duplicado pelo sentimento de que ninguém acredita no senhor — como citou outro dia — podemos chamar de síndrome de Copérnico.

— Síndrome de Copérnico?

— Sim, é uma síndrome recorrente em muitos pacientes afetados de paranoia ou de esquizofrenia paranoide: a certeza de possuir uma verdade essencial, capital, que o coloca acima do comum dos mortais, mas na qual o mundo inteiro se recusa a acreditar.

— E acha que sofro dessa síndrome?

— Parece-me muito provável. O senhor está convencido de haver descoberto uma coisa extraordinária, a capacidade de ouvir o pensamento dos outros e que, ainda por cima, esse poder lhe permitiu escapar do mais terrível atentado da nossa história. Além do mais, está convencido de que ninguém vai acreditar no senhor, de que o mundo inteiro refuta a sua verdade, até mesmo que existe um complô para impedir que revele a sua história... Existem aí todos os elementos da síndrome de Copérnico.”

TRECHO 2


"Eu existo. Você existe. Eles existem.
Eu existo, eu que escrevo, e existe você que lê, talvez.
Mas essas palavras não são meu eu. Não é a mim que você lê. Não se iluda: o meu eu é inacessível. E não digo isso para me vangloriar. É assim, é humano.
Você me entende? Não. Você vê o meu interior? Menos ainda. Como também eu não vejo o seu, aqui, agora. Não tente. Continuaremos estranhos para sempre.
O outro. Eu precisava me certificar. Procurei nos dicionários. E vi que, para eles, também é uma palavra problemática (....)
No dicionário de Armand Colin, temos um arremedo de consolo:
Outro: 1.Sentido geral: o outro como eu que não é o eu, como correlativo do eu. 2. Fil.: em Rousseau: o outro designa o meu semelhante, isto é, qualquer ser que vive e que sofre, com o qual me identifico na experiência privilegiada da piedade. Em Hegel: o outro, dado irrecusável como existência social e histórica, é, numa relação intersubjetiva, constitutivo de toda consciência no seu próprio surgimento...
Dado irrecusável...Hegel diz isso para se divertir.
Não há solidão maior do que perante os outros.
Essa solidão é cansativa. Só, só, só, eu estou só. Eu estou só. 'As vezes preciso dos outros. Para quê?
O outro é um mistério e um paradoxo. Ele é, desde sempre, o genitor de todos os meus tormentos. Não se esconda. Na verdade, não é culpa sua. É assim. E, de qualquer modo, eu só existo através de você.
Eis por que: o Homo sapiens não pode existir sozinho. É preciso um pai e uma mãe para nascer. Nós somos o produto de um outro. E essa dependência não nos abandona nunca. Ela está em toda parte. A linguagem, a cultura....tudo vem dos outros. Somos herdeiros constantes.
E, no entanto, o outro continua a ser inacessível. Eu vejo o corpo do outro, mas nunca vejo seu espírito. Nunca vejo sua alma, sua interioridade. E a interpretação que eu faço do outro é necessariamente inexata, assim como a que você faz de mim.
Enquanto o outro continuar a ser outro, seremos vítimas de uma eterna incomunicabilidade. Por mais que se tente.
A invenção da linguagem é a mais bela confissão da nossa incapacidade de nos entendermos."



Do livro "A síndrome de Corpénico"

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quarta-feira, 20 de julho de 2011 by Unknown
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