O dogma anti-dogma

Fonte: Crítica na Rede

Autor: Desidério Murcho*
Fotos e modelo do post garantido pelo Bule Voador, blog oficial da LiHS

Todo o dogma é uma crença, mas nem toda a crença é um dogma. Uma  crença é qualquer representação, susceptível de ter valor de verdade,  que um agente cognitivo faz das coisas. Todos cremos, por exemplo, que  Hitler existiu e que a água nos mata a sede. Toda a fé é uma crença, mas  nem toda a crença é uma fé. A fé é uma crença especificamente  religiosa, e, como os dogmas, poderá ter outros elementos além dos  puramente epistémicos.


Os dogmas têm uma componente epistémica e uma componente psicológica,  e caracterizam-se pela relação pouco recomendável existente entre  ambas. A componente epistémica do dogma é ser uma crença que a pessoa  que a tem é incapaz de justificar adequadamente; a componente  psicológica é uma forte adesão, emocional ou pessoal, a essa crença. Uma  pessoa é tanto mais dogmática quanto maior discrepância existir entre a  força das razões ou justificações de que dispõe a favor de uma dada  crença e a força da sua adesão.

“uma pessoa ateia pode ser dogmática  se não tiver justificações adequadas  para isso, ao mesmo tempo que  adere veementemente ao seu ateísmo, como  parece o caso de Nietzsche”

Todos temos inúmeras crenças injustificadas ou inadequadamente  justificadas, pela simples razão de que nenhum de nós pode analisar  cuidadosamente todas as suas crenças. Assim, no que respeita à  justificação de crenças, é inevitável uma certa distribuição do trabalho  intelectual. Eu creio que a água é H2O, mas a minha  justificação a favor desta crença, ainda que adequada, é secundária, no  sentido em que se baseia no que os cientistas afirmam. Apesar de eu não  dispor de uma justificação epistemicamente primeira para esta crença,  não é um dogma para mim porque não tenho em relação a ela um apego  desproporcional: se amanhã eu ler uma notícia na Nature declarando que vários cientistas confirmaram que há um erro subtil que os fez pensar que a água era H2O quando na realidade é outra coisa qualquer, não terei dificuldade em abandonar a minha crença anterior.





Outras crenças injustificadas ou inadequadamente justificadas são no  entanto acompanhadas de uma forte convicção, em tudo desproporcional  relativamente às justificações disponíveis. Entre essas crenças  inclui-se alguns casos de crenças políticas, religiosas e relativas a  comportamentos sociais. São aqueles casos em que as pessoas insistem  tanto mais veementemente nas suas ideias quanto mais frágeis são as  razões que conseguem articular a favor delas.



Um dos dogmas contemporâneos mais persistente, incluindo nas zonas  mais anémicas da cultura académica, é o que à primeira vista parece um  metadogma: um dogma acerca de dogmas. Trata-se do dogma de que devemos  combater os dogmas. Não se trata realmente de um metadogma porque  alberga uma confusão quanto ao conceito de dogma. Apesar de  enganadoramente se falar em combater dogmas, trata-se na realidade de  combater ou defender certas ideias feitas, ao mesmo tempo que se rotula  de dogmáticas, sem qualquer justificação, as ideias contrárias.

Os exemplos são muitos, mas vou mencionar apenas três.


O primeiro é a ideia de que devemos tudo fazer para ter uma sociedade  igualitária — sem que qualquer das pessoas empenhadas em tal coisa faça  a mínima ideia de como justificar a opinião de que uma sociedade  igualitária é melhor do que uma que não o seja. A bibliografia sobre o  tema é desprezada com a atitude típica dos ignorantes: é como se não  existisse.




O segundo exemplo é a ideia de que toda a gente é culta, sendo  proibido dizer que uma pessoa é inculta se não sabe ler, não faz a  mínima ideia do que é o Sol nem que existe um sistema solar, e nem  sequer tem noção da dimensão do planeta Terra nem da história da  humanidade. Deste singular ponto de vista, toda a gente é culta porque  ter cultura é ter costumes: uma manobra semântica mais ou menos  equivalente a dizer que toda a gente é rica porque “rico” passou a  querer dizer “digno de consideração e respeito.”





O terceiro é o dogma ecológico: a ideia de que “o planeta está  doente” (notável expressão), sem que no entanto se faça a mais pálida  ideia dos indícios a favor de tal coisa, até porque nem sequer se sabe  consultar documentos científicos sobre o estado ecológico do planeta,  além de nada se saber da história da humanidade nem do planeta; de modo  que não se sabe sequer se o planeta está hoje mais ou menos “doente” do  que, digamos, há três mil anos.






Todos estes casos, e muitos outros, são exemplos de dogmas. Não  porque as ideias veementemente afirmadas sejam falsas — penso que  algumas são verdadeiras — mas apenas porque quem as afirma tão  veementemente não dispõe de justificações adequadas para pensar que são  verdadeiras. Na verdade, quem as afirma tão veementemente tem como  principal objectivo silenciar quem pensa o contrário e portanto impedir a  discussão ponderada das razões a favor e contra as suas ideias  preferidas. A ideia é que é arriscado levar a sério a hipótese de  estarem erradas as ideias feitas que aceitamos sem razões, pois  poderemos descobrir que estão mesmo erradas. Deveria ser desnecessário  dizer que, no mínimo, esta atitude está longe de ser epistemicamente  virtuosa.


Assim, sob a aparência de se estar a combater dogmas, afirma-se  ideias a favor das quais as pessoas que as defendem não dispõem de  justificações minimamente adequadas — até porque se trata de pessoas  cuja mundividência é na sua quase totalidade formada pelo que ouvem  dizer na rua e pelo que vêem na televisão. Combater dogmas torna-se  assim um dogma: uma atitude impensada e veemente, a favor da qual o  combatente não tem qualquer justificação ponderada, articulada e  adequada. Mas não é realmente um metadogma porque em muitos casos o que  se combate não são dogmas; são apenas ideias de que não se gosta porque  se foi cegamente treinado para isso pelos meios de comunicação, por  sistemas educativos deficientes e por autores bombásticos mas falhos de  raciocínio cuidadoso e articulado.

A palavra portuguesa “dogma” é de origem grega. Originalmente, o termo era próximo de dokein, que  significa parecer. Um dogma era apenas algo que parecia verdadeiro. O  termo foi usado por alguns filósofos cépticos, porém, para descrever os  filósofos que defendiam teorias sobre vários assuntos, ao invés de  argumentarem infindavelmente a favor da impossibilidade de se saber seja  o que for, como os próprios cépticos faziam. Deste modo, e segundo essa  classificação, filósofos perfeitamente antidogmáticos, como  Aristóteles, são considerados dogmáticos nessa enganadora terminologia. O  uso do termo neste sentido grego ocorria ainda no séc. XVIII em alguns  textos de Kant, o que hoje provoca confusão — pois parece que a única  maneira de não se ser dogmático é parar de estudar as coisas e ser  céptico. Para não fazer confusões é preciso não esquecer que o termo  “dogmático,” tal como era usado por Kant ou pelos cépticos gregos, nada  tem a ver com o sentido popular actual do termo.


Não sei se esta confusão terminológica está na origem da ilusão de  que ser antidogmático é ser do contra. Assim, se uma pessoa vive numa  sociedade maioritariamente cristã, ser antidogmático seria, deste ponto  de vista, declarar a morte de Deus. Que isto é uma ilusão deveria ser  óbvio: pois uma pessoa que acredita em Deus pode não ser dogmática se  tiver justificações adequadas para isso e não aderir  desproporcionalmente à sua crença; e uma pessoa ateia pode ser dogmática  se não tiver justificações adequadas para isso, ao mesmo tempo que  adere veementemente ao seu ateísmo, como parece o caso de Nietzsche. Em  particular, alguém que nunca estudou detidamente os argumentos contra e a  favor da existência de Deus, e que nunca justificou a sua descrença,  poderá ser bastante mais dogmático quanto à inexistência de Deus do que  Tomás de Aquino era quanto à sua existência — porque este tem vários  argumentos bem pensados a favor da existência de Deus.

Na história da humanidade, a origem de muitas das suas desgraças não  está apenas na imoralidade elementar e infantil de considerar que os  meus interesses, por serem meus, são mais importantes do que os dos  outros. É defensável que a ignorância, a falta de ponderação e a pura  tolice estão em pé de igualdade como causas das misérias humanas. Assim,  fingir que se luta contra os dogmas quando na realidade se cultiva a  expressão imediatista de sentires imponderados é duplamente perverso:  por um lado, porque toda a atitude falha de ponderação, estudo e  argumentação cuidadosa é um passo na direcção da miséria humana; por  outro, porque bloqueia a verdadeira luta contra os dogmas, que é  precisamente o oposto da afirmação de sonoros slogans publicitários, tantas vezes disfarçados de aforismos supostamente  profundos. A única maneira de real e honestamente lutar contra os dogmas  é cultivar a análise cuidadosa de ideias, a argumentação ponderada e a  teorização pormenorizada; toda a suposta luta contra os dogmas  incompatível com isto é pura mentira.


Uma das características capitais da fé de Abraão — ainda que talvez  não de todas as fés — é tratar-se de uma atitude que tem no seu próprio  seio mecanismos para impedir a dúvida e portanto a possibilidade de  defecção. Em sociedades muito inseguras, em que a mortalidade infantil é  altíssima, a fome e a doença são intermitentes e uma pessoa com 45 anos  é uma anciã, se tiver a sorte de lá chegar, é algo arriscado não crer  num Deus que, segundo os seus prosélitos, castiga quem nele não crê. A  aposta de Pascal é neste caso clara: mais vale crer, não vá o diabo — ou  Deus — tecê-las. E para crer é preciso crer com muita convicção e  sinceridade, caso contrário podemos ser apanhados em falso. Isto tem o  efeito real de a simples hipótese de deixar de crer em Deus aterrorizar a  pessoa de sociedades muito inseguras — pois as consequências podem ser  muito graves. Torna-se um obstáculo epistemológico ao combate ao dogma,  pois mesmo que nenhuma boa razão a pessoa tenha para crer que Deus  existe, inibe-se obviamente de ponderar cuidadosamente as razões e de  adaptar a força das suas convicções aos argumentos disponíveis.


A imagem paralela desta situação é a circunstância epistémica em que  ficam muitas pessoas depois de ler filósofos supostamente  antidogmáticos. Porque esses filósofos instilam uma desconfiança na  “razão” — leia-se: análise cuidadosa de argumentos, teorização paciente e  minuciosa e consideração de alternativas — tornam-se obstáculos  epistemológicos à luta contra os dogmas. Pois não há outra maneira de  lutar contra os dogmas a não ser usando a razão, e é preciso usá-la  cuidadosamente, porque somos falíveis e cometemos erros. Frases feitas,  aforismos bombásticos e rendilhados frásicos inspiradores não servem  senão para impedir a análise cuidadosa de ideias e argumentos. A sedução  retórica impede o pensamento crítico com bastante mais eficácia do que o  édito papal ou o Santo Ofício.


Lutar contra dogmas não é afirmar as ideias em que já cremos. Lutar  contra dogmas é, antes de mais, aprender, e depois ensinar, a pensar  rigorosamente, a argumentar com proficiência, a teorizar minuciosamente e  com precisão. Tudo isto implica estudo, conhecimento das bibliografias,  esforço e honestidade intelectual. Não é, pois, mais fácil nem mais  atraente, à primeira vista, do que a imagem do rebelde social que debita  slogans sonoros. Mas é muitíssimo mais promissor — e tem a vantagem não negligenciável de não ser uma mentira.


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Desidério Murcho é filósofo, professor e escritor português, leciona no Brasil na Universidade Federal de Ouro Preto.

quinta-feira, 21 de julho de 2011 by Unknown
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