Fonte: Crítica na Rede
Autor: Desidério Murcho*
Fotos e modelo do post garantido pelo Bule Voador, blog oficial da LiHS
Todos temos inúmeras crenças injustificadas ou inadequadamente justificadas, pela simples razão de que nenhum de nós pode analisar cuidadosamente todas as suas crenças. Assim, no que respeita à justificação de crenças, é inevitável uma certa distribuição do trabalho intelectual. Eu creio que a água é H2O, mas a minha justificação a favor desta crença, ainda que adequada, é secundária, no sentido em que se baseia no que os cientistas afirmam. Apesar de eu não dispor de uma justificação epistemicamente primeira para esta crença, não é um dogma para mim porque não tenho em relação a ela um apego desproporcional: se amanhã eu ler uma notícia na Nature declarando que vários cientistas confirmaram que há um erro subtil que os fez pensar que a água era H2O quando na realidade é outra coisa qualquer, não terei dificuldade em abandonar a minha crença anterior.
O primeiro é a ideia de que devemos tudo fazer para ter uma sociedade igualitária — sem que qualquer das pessoas empenhadas em tal coisa faça a mínima ideia de como justificar a opinião de que uma sociedade igualitária é melhor do que uma que não o seja. A bibliografia sobre o tema é desprezada com a atitude típica dos ignorantes: é como se não existisse.
O segundo exemplo é a ideia de que toda a gente é culta, sendo proibido dizer que uma pessoa é inculta se não sabe ler, não faz a mínima ideia do que é o Sol nem que existe um sistema solar, e nem sequer tem noção da dimensão do planeta Terra nem da história da humanidade. Deste singular ponto de vista, toda a gente é culta porque ter cultura é ter costumes: uma manobra semântica mais ou menos equivalente a dizer que toda a gente é rica porque “rico” passou a querer dizer “digno de consideração e respeito.”
A palavra portuguesa “dogma” é de origem grega. Originalmente, o termo era próximo de dokein, que significa parecer. Um dogma era apenas algo que parecia verdadeiro. O termo foi usado por alguns filósofos cépticos, porém, para descrever os filósofos que defendiam teorias sobre vários assuntos, ao invés de argumentarem infindavelmente a favor da impossibilidade de se saber seja o que for, como os próprios cépticos faziam. Deste modo, e segundo essa classificação, filósofos perfeitamente antidogmáticos, como Aristóteles, são considerados dogmáticos nessa enganadora terminologia. O uso do termo neste sentido grego ocorria ainda no séc. XVIII em alguns textos de Kant, o que hoje provoca confusão — pois parece que a única maneira de não se ser dogmático é parar de estudar as coisas e ser céptico. Para não fazer confusões é preciso não esquecer que o termo “dogmático,” tal como era usado por Kant ou pelos cépticos gregos, nada tem a ver com o sentido popular actual do termo.
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Todo o dogma é uma crença, mas nem toda a crença é um dogma. Uma crença é qualquer representação, susceptível de ter valor de verdade, que um agente cognitivo faz das coisas. Todos cremos, por exemplo, que Hitler existiu e que a água nos mata a sede. Toda a fé é uma crença, mas nem toda a crença é uma fé. A fé é uma crença especificamente religiosa, e, como os dogmas, poderá ter outros elementos além dos puramente epistémicos.
Os dogmas têm uma componente epistémica e uma componente psicológica, e caracterizam-se pela relação pouco recomendável existente entre ambas. A componente epistémica do dogma é ser uma crença que a pessoa que a tem é incapaz de justificar adequadamente; a componente psicológica é uma forte adesão, emocional ou pessoal, a essa crença. Uma pessoa é tanto mais dogmática quanto maior discrepância existir entre a força das razões ou justificações de que dispõe a favor de uma dada crença e a força da sua adesão.
“uma pessoa ateia pode ser dogmática se não tiver justificações adequadas para isso, ao mesmo tempo que adere veementemente ao seu ateísmo, como parece o caso de Nietzsche”
Todos temos inúmeras crenças injustificadas ou inadequadamente justificadas, pela simples razão de que nenhum de nós pode analisar cuidadosamente todas as suas crenças. Assim, no que respeita à justificação de crenças, é inevitável uma certa distribuição do trabalho intelectual. Eu creio que a água é H2O, mas a minha justificação a favor desta crença, ainda que adequada, é secundária, no sentido em que se baseia no que os cientistas afirmam. Apesar de eu não dispor de uma justificação epistemicamente primeira para esta crença, não é um dogma para mim porque não tenho em relação a ela um apego desproporcional: se amanhã eu ler uma notícia na Nature declarando que vários cientistas confirmaram que há um erro subtil que os fez pensar que a água era H2O quando na realidade é outra coisa qualquer, não terei dificuldade em abandonar a minha crença anterior.
Outras crenças injustificadas ou inadequadamente justificadas são no entanto acompanhadas de uma forte convicção, em tudo desproporcional relativamente às justificações disponíveis. Entre essas crenças inclui-se alguns casos de crenças políticas, religiosas e relativas a comportamentos sociais. São aqueles casos em que as pessoas insistem tanto mais veementemente nas suas ideias quanto mais frágeis são as razões que conseguem articular a favor delas.
Um dos dogmas contemporâneos mais persistente, incluindo nas zonas mais anémicas da cultura académica, é o que à primeira vista parece um metadogma: um dogma acerca de dogmas. Trata-se do dogma de que devemos combater os dogmas. Não se trata realmente de um metadogma porque alberga uma confusão quanto ao conceito de dogma. Apesar de enganadoramente se falar em combater dogmas, trata-se na realidade de combater ou defender certas ideias feitas, ao mesmo tempo que se rotula de dogmáticas, sem qualquer justificação, as ideias contrárias.
Os exemplos são muitos, mas vou mencionar apenas três.
O primeiro é a ideia de que devemos tudo fazer para ter uma sociedade igualitária — sem que qualquer das pessoas empenhadas em tal coisa faça a mínima ideia de como justificar a opinião de que uma sociedade igualitária é melhor do que uma que não o seja. A bibliografia sobre o tema é desprezada com a atitude típica dos ignorantes: é como se não existisse.
O segundo exemplo é a ideia de que toda a gente é culta, sendo proibido dizer que uma pessoa é inculta se não sabe ler, não faz a mínima ideia do que é o Sol nem que existe um sistema solar, e nem sequer tem noção da dimensão do planeta Terra nem da história da humanidade. Deste singular ponto de vista, toda a gente é culta porque ter cultura é ter costumes: uma manobra semântica mais ou menos equivalente a dizer que toda a gente é rica porque “rico” passou a querer dizer “digno de consideração e respeito.”
O terceiro é o dogma ecológico: a ideia de que “o planeta está doente” (notável expressão), sem que no entanto se faça a mais pálida ideia dos indícios a favor de tal coisa, até porque nem sequer se sabe consultar documentos científicos sobre o estado ecológico do planeta, além de nada se saber da história da humanidade nem do planeta; de modo que não se sabe sequer se o planeta está hoje mais ou menos “doente” do que, digamos, há três mil anos.
Todos estes casos, e muitos outros, são exemplos de dogmas. Não porque as ideias veementemente afirmadas sejam falsas — penso que algumas são verdadeiras — mas apenas porque quem as afirma tão veementemente não dispõe de justificações adequadas para pensar que são verdadeiras. Na verdade, quem as afirma tão veementemente tem como principal objectivo silenciar quem pensa o contrário e portanto impedir a discussão ponderada das razões a favor e contra as suas ideias preferidas. A ideia é que é arriscado levar a sério a hipótese de estarem erradas as ideias feitas que aceitamos sem razões, pois poderemos descobrir que estão mesmo erradas. Deveria ser desnecessário dizer que, no mínimo, esta atitude está longe de ser epistemicamente virtuosa.
Assim, sob a aparência de se estar a combater dogmas, afirma-se ideias a favor das quais as pessoas que as defendem não dispõem de justificações minimamente adequadas — até porque se trata de pessoas cuja mundividência é na sua quase totalidade formada pelo que ouvem dizer na rua e pelo que vêem na televisão. Combater dogmas torna-se assim um dogma: uma atitude impensada e veemente, a favor da qual o combatente não tem qualquer justificação ponderada, articulada e adequada. Mas não é realmente um metadogma porque em muitos casos o que se combate não são dogmas; são apenas ideias de que não se gosta porque se foi cegamente treinado para isso pelos meios de comunicação, por sistemas educativos deficientes e por autores bombásticos mas falhos de raciocínio cuidadoso e articulado.
A palavra portuguesa “dogma” é de origem grega. Originalmente, o termo era próximo de dokein, que significa parecer. Um dogma era apenas algo que parecia verdadeiro. O termo foi usado por alguns filósofos cépticos, porém, para descrever os filósofos que defendiam teorias sobre vários assuntos, ao invés de argumentarem infindavelmente a favor da impossibilidade de se saber seja o que for, como os próprios cépticos faziam. Deste modo, e segundo essa classificação, filósofos perfeitamente antidogmáticos, como Aristóteles, são considerados dogmáticos nessa enganadora terminologia. O uso do termo neste sentido grego ocorria ainda no séc. XVIII em alguns textos de Kant, o que hoje provoca confusão — pois parece que a única maneira de não se ser dogmático é parar de estudar as coisas e ser céptico. Para não fazer confusões é preciso não esquecer que o termo “dogmático,” tal como era usado por Kant ou pelos cépticos gregos, nada tem a ver com o sentido popular actual do termo.
Não sei se esta confusão terminológica está na origem da ilusão de que ser antidogmático é ser do contra. Assim, se uma pessoa vive numa sociedade maioritariamente cristã, ser antidogmático seria, deste ponto de vista, declarar a morte de Deus. Que isto é uma ilusão deveria ser óbvio: pois uma pessoa que acredita em Deus pode não ser dogmática se tiver justificações adequadas para isso e não aderir desproporcionalmente à sua crença; e uma pessoa ateia pode ser dogmática se não tiver justificações adequadas para isso, ao mesmo tempo que adere veementemente ao seu ateísmo, como parece o caso de Nietzsche. Em particular, alguém que nunca estudou detidamente os argumentos contra e a favor da existência de Deus, e que nunca justificou a sua descrença, poderá ser bastante mais dogmático quanto à inexistência de Deus do que Tomás de Aquino era quanto à sua existência — porque este tem vários argumentos bem pensados a favor da existência de Deus.
Na história da humanidade, a origem de muitas das suas desgraças não está apenas na imoralidade elementar e infantil de considerar que os meus interesses, por serem meus, são mais importantes do que os dos outros. É defensável que a ignorância, a falta de ponderação e a pura tolice estão em pé de igualdade como causas das misérias humanas. Assim, fingir que se luta contra os dogmas quando na realidade se cultiva a expressão imediatista de sentires imponderados é duplamente perverso: por um lado, porque toda a atitude falha de ponderação, estudo e argumentação cuidadosa é um passo na direcção da miséria humana; por outro, porque bloqueia a verdadeira luta contra os dogmas, que é precisamente o oposto da afirmação de sonoros slogans publicitários, tantas vezes disfarçados de aforismos supostamente profundos. A única maneira de real e honestamente lutar contra os dogmas é cultivar a análise cuidadosa de ideias, a argumentação ponderada e a teorização pormenorizada; toda a suposta luta contra os dogmas incompatível com isto é pura mentira.
Uma das características capitais da fé de Abraão — ainda que talvez não de todas as fés — é tratar-se de uma atitude que tem no seu próprio seio mecanismos para impedir a dúvida e portanto a possibilidade de defecção. Em sociedades muito inseguras, em que a mortalidade infantil é altíssima, a fome e a doença são intermitentes e uma pessoa com 45 anos é uma anciã, se tiver a sorte de lá chegar, é algo arriscado não crer num Deus que, segundo os seus prosélitos, castiga quem nele não crê. A aposta de Pascal é neste caso clara: mais vale crer, não vá o diabo — ou Deus — tecê-las. E para crer é preciso crer com muita convicção e sinceridade, caso contrário podemos ser apanhados em falso. Isto tem o efeito real de a simples hipótese de deixar de crer em Deus aterrorizar a pessoa de sociedades muito inseguras — pois as consequências podem ser muito graves. Torna-se um obstáculo epistemológico ao combate ao dogma, pois mesmo que nenhuma boa razão a pessoa tenha para crer que Deus existe, inibe-se obviamente de ponderar cuidadosamente as razões e de adaptar a força das suas convicções aos argumentos disponíveis.
A imagem paralela desta situação é a circunstância epistémica em que ficam muitas pessoas depois de ler filósofos supostamente antidogmáticos. Porque esses filósofos instilam uma desconfiança na “razão” — leia-se: análise cuidadosa de argumentos, teorização paciente e minuciosa e consideração de alternativas — tornam-se obstáculos epistemológicos à luta contra os dogmas. Pois não há outra maneira de lutar contra os dogmas a não ser usando a razão, e é preciso usá-la cuidadosamente, porque somos falíveis e cometemos erros. Frases feitas, aforismos bombásticos e rendilhados frásicos inspiradores não servem senão para impedir a análise cuidadosa de ideias e argumentos. A sedução retórica impede o pensamento crítico com bastante mais eficácia do que o édito papal ou o Santo Ofício.
Lutar contra dogmas não é afirmar as ideias em que já cremos. Lutar contra dogmas é, antes de mais, aprender, e depois ensinar, a pensar rigorosamente, a argumentar com proficiência, a teorizar minuciosamente e com precisão. Tudo isto implica estudo, conhecimento das bibliografias, esforço e honestidade intelectual. Não é, pois, mais fácil nem mais atraente, à primeira vista, do que a imagem do rebelde social que debita slogans sonoros. Mas é muitíssimo mais promissor — e tem a vantagem não negligenciável de não ser uma mentira.
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Desidério Murcho é filósofo, professor e escritor português, leciona no Brasil na Universidade Federal de Ouro Preto.