Autor: André Tadeu de Oliveira
Post original: Bule Voador.
Alguns líderes eclesiásticos cristãos, principalmente aqueles com maior influência na mídia, pautam sua atuação de acordo com valores claramente fundamentalistas. Além da constante luta contra causas humanistas, como o virulento embate direcionado aos direitos elementares da comunidade LGBT tão bem exemplifica, baseiam suas pregações religiosas na exclusividade.
São mestres na arte de demonizar o diferente. Fundamentalistas supostamente mais refinados, através de uma rigorosa análise teológica, qualificam irmãos da mesma tradição religiosa com rótulos absolutamente ultrapassados. Tal estratégia visa apenas aniquilar os supostos heterodoxos, alijando-os da instituição que tanto amam.
O outro grupo de fundamentalistas, mais popular e com forte penetração nas massas religiosas, não possui um discurso teológico tão “sofisticado” quanto o primeiro, mas através de uma forte presença midiática, aliada às inegáveis qualidades retóricas, arrebanha para si a opinião do vasto público religioso.
Tal realidade se faz presente em todos os grupos cristãos, do catolicismo-romano até a mais recente igreja neopentecostal.
Assim, nos dizeres do padre e sociólogo católico Pedro Ivo Oro, reproduzem o conhecido discurso de que “o outro seja o demônio”. O outro, no caso, é todo aquele que não se enquadra na suposta ortodoxia dominante, a saber: o seguidor de uma crença não cristã, o ateu, o agnóstico, o ecumênico, o simpatizante da teologia da libertação, o liberal, o neo-ortodoxo e etc.
Sabemos que a divergência no mundo das ideias não é apenas aceitável, mas é ferramenta fundamental para o desenvolvimento humano. Como bem dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. No entanto, os fundamentalistas não encerram suas divergências no âmbito do pensamento, mas levam essas diferenças naturais ao ponto mais extremo, acabando, literalmente, com a vida de seus oponentes.
Diante deste triste quadro, é interessante trazer à memória a biografia de modernos líderes cristãos que trilharam um caminho visceralmente oposto ao citado acima. Este é o caso do saudoso Jorge Bertolaso Stella.
Italiano de Abadia, cidade localizada na província de Parma, nasceu em 1888, chegando ao Brasil com apenas três anos de idade. Junto com seus familiares, estabeleceu-se no interior de São Paulo. De origem católico-romana, abraçou o protestantismo de orientação reformada, tornando-se pastor evangélico em 1919. Destacou-se como pastor por quase trinta anos na Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, comunidade mãe de todo o presbiterianismo paulista.
Sua formação intelectual é digna de nota. Teólogo formado, adquiriu real interesse pela filologia, sendo fluente no grego e hebraico. Tornou-se especialista em línguas absolutamente complexas, como o basco e o etrusco. Não obstante seu apurado conhecimento nessas línguas, sua principal contribuição à cultura brasileira reside no fato de ser o primeiro intelectual brasileiro a dominar o sânscrito, milenar língua indiana.
Apaixonado pela cultura hindu, foi responsável pela primeira tradução acadêmica do Bhagavad Gita, principal livro sagrado do hinduísmo. O trabalho de Stella foi além da tradução, contendo comentários históricos, lingüísticos e teológicos a respeito do clássico indiano. Seguindo esta linha, publicou vários estudos a respeito da cultura e religião do povo indiano. Detinha, ainda, um amplo conhecimento sobre budismo e jainismo. Defensor de um verdadeiro diálogo interreligioso, Stella distinguia-se do evangélico padrão brasileiro. Sua visão das crenças não cristãs não era marcada pela tradicional apologética. Além de considerá-las como manifestações naturais da religiosidade humana, analisava as mesmas com o rigor acadêmico de um verdadeiro historiador da religião.
Mesmo não concordando com o ateísmo, respeitava-o como forma de pensamento, ressaltando que o caráter de uma pessoa independia de suas convicções religiosas.
Foi professor emérito da cadeira de História das Religiões do antigo Seminário Teológico da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, localizado em São Paulo, e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Também participou de inúmeras comissões tradutoras da Sociedade Bíblica do Brasil. Como especialista em assuntos bíblicos, sua opinião a respeito da formação do cânon demonstra seu espírito científico e progressista. Para Stella, a Bíblia, mesmo sendo Palavra de Deus, foi composta através de um longo processo cuja influência de textos provenientes de outras culturas foi determinante. Desta forma, leis contidas no Pentateuco, por exemplo, foram inspiradas no conhecido Código de Hammurabi. Em suma, houve um intercâmbio entre a antiga cultura hebréia e a de seus vizinhos orientais. Esta constatação é inaceitável para grupos fundamentalistas, pois destrói a ideia de uma revelação pura e restrita ao antigo povo de Israel.
Após este breve apanhado a respeito da vida de Jorge Bertolaso Stella, vamos conhecer um pouco de suas ideias humanistas de acordo com seus próprios escritos.
Além de importantes obras de teor teológico, filológico e historiográfico, Bertolaso Stella tinha como máxima divulgar seus pensamentos em breves opúsculos, quase todos publicados pela saudosa Imprensa Metodista. O importante não era manter-se restrito ao seleto círculo de teólogos, acadêmicos ou intelectuais, mas divulgar seu conhecimento para o verdadeiro público alvo de um ministro religioso, a igreja. Abordaremos, brevemente, alguns temas debatidos por Jorge Bertolaso Stella.
I – Direitos da Mulher
A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, denominação a qual Bertolaso Stella esteve ligado até o final de sua vida, apenas admitiu mulheres ao oficialato pleno, isto é, presbiterato e pastorado, em 1999. No entanto, desde o início de sua vida pastoral, sua defesa em prol do ministério feminino foi uma marca distintiva. Sobre este assunto escreveu no livreto “A Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo e a Renovação”, datado de 1974, os seguintes dizeres:
“Eu defendo a ordenação da mulher para o santo ministério, sim, mulheres pastoras. Deus chama as mulheres para o ministério ou pastorado. Esse Ser Eterno escolhe a quem quer e quando quer para sua obra santa. É um erro pensar que Deus somente escolhe homens para o pastorado. Nós nunca demos à mulher o lugar que ela realmente merece. Preconceitos, estreiteza de mente e ignorância, muitas vezes têm impedido que ela exerça a tarefa de que é digna e capaz. A mulher em coisa alguma é inferior ao homem. A mulher é a natureza para significar que ela é tudo. No código indiano das Leis de Manu, encontramos esta expressão: a mulher é imagem da terra. Aquela gente, bastante antiga, já conhecia o valor da mulher.”
II – Transitoriedade de doutrinas e dogmas
Ao contrário da postura fundamentalista, Jorge Bertolasso Stella defendia que determinadas doutrinas são passiveis de revisão, devendo evoluir de acordo com o ser humano. Deus não seria estático:
“Existem doutrinas, princípios e praxes que precisam de uma revisão, são obsoletos e tiveram razão de ser somente em determinada época. O volume não é pequeno e constitui uma carga pesada para a Igreja, que ameaça ir ao fundo como o navio, descrito no livro de Atos.”
III – Humanismo
Claras ideias humanistas são expostas no livreto “Um Só Mundo”, publicado em 1957:
“A humanidade é uma só. Os mares, lagos, rios, montanhas, vales e outra qualquer coisa, não podem dividir o mundo em partes separadas. Essa separação existe somente na superfície. No fundo, tudo é igual. As conquistas são imorais. Tudo deve ser para todos. Há terra, ar, luz que constituem o ambiente e pertencem a qualquer criatura enquanto viver. Não é humano uma nação, uma família ou um indivíduo apossar-se de uma parte do mundo, de uma região ou de uma parte da terra e abandonar os outros seres, deixando-os na penúria, sem trabalho, sem terra para cultivar, semear e viver. Em regra, o que motiva a guerra, que é câncer da humanidade, é justamente a noção de pátria, nação e povo.”
Encontramos no trecho acima uma clara crítica ao espírito nacionalista e xenófobo.
“Os seres humanos constituem uma irmandade na face da terra. Não importa a cor da pele, costumes diversos pelo ambiente e mesmo tendências diferentes. Todos os homens são irmãos e por isso devem se amar, banindo o egoísmo e cancelando a guerra, que significa a destruição da grande família humana.”
IV – Defesa dos animais
Em uma época em que este tema sequer era ventilado, encontramos em Mensagens Evangélicas:
“Ama os animais com os quais tens muita afinidade. Tu também és um animal. Eles compreendem a tua linguagem e tu entendes a deles. Possuem um corpo: sede da dor e do prazer. Eles amam e odeiam, choram e riem como tu, pedem e oferecem, nascem e morrem. Belo é o provérbio que reza : – O justo olha pela vida dos seus animais (Provérbios 12.10).”
Fiel às descobertas científicas, o pastor ítalo-brasileiro afirma a existência de sentidos nos animais.
V – Posicionamento socialista e democrático
“Como fruto nutritivo e apreciável dessa árvore frondosa, que se chama cristianismo, apareceu, na igreja primitiva, o comunismo. A Natureza é a mestra do homem e os seus ensinos são diretrizes da vida. Não podemos despregar os olhos dela. A natureza é comunista e altruísta. Deus é comunista. Ele criou tudo para todos. Segundo Gênesis 1:29-30, a terra, a água, o ar e a luz pertencem a todos. A criança nasce comunista. Ela se apodera de tudo quanto à cerca, não conhece restrições. A primeira família humana, da qual todos descendem, era comunista. Religiões e grupos há, que praticam o comunismo, por ser expressão do amor e da união. O comunismo cristão que estou tratando aqui, nasceu de persuasão, não da imposição. O seu princípio basilar era expresso com esta frase : “ o que é meu é teu”. Não estava em voga a outra frase que o apresenta assim, por alguns: “o que é teu é meu”.”
Interessantes as colocações de Bertolaso Stella. Publicadas em “Conceitos Religiosos”, de 1976, portanto em pleno regime militar, assume uma postura claramente esquerdista. No entanto, como bom humanista, diverge do tipo de comunismo “à lá soviético”, onde tais ideais eram impostas por uma estrutura autoritária.
VI – Critica ao cristianismo institucionalizado
Suas críticas ao cristianismo de sua época são mordazes e contundentes:
“O cristianismo atual fracassou. É um cristianismo capitalista e egoísta, repleto de viúvas e velhos pobres, famintos e miseráveis.”- Conceitos Religiosos,1976.
“O Cristianismo de Cristo não carece de reforma, nem de ser substituído. O cristianismo dos homens, que é cheio de especulações filosóficas, teológicas e doutrinárias, esse, sim, precisa ser reformado, digo mais, substituído.”- Um Só Mundo, 1957.
“Pouca gente conhece a história dos Concílios. Alguns deles agiram sem muita caridade cristã. O célebre Credo de Nicéia, por exemplo, aprovado no ano de 325, que muita gente o repete quase de joelhos, se fosse apertado nas mãos revelaria gotas de sangue, porque foi elaborado no ambiente de discórdia, inveja e ódio.”- A Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo e a Renovação, 1974.
VII – Visão científica e crítica a respeito da própria Bíblia
Como experiente exegeta, produziu comentários claramente vinculados ao método histórico-crítico de estudos bíblicos:
“Eu sou pela volta ao passado, pelas origens primeiras do cristianismo e isto, porventura, daria um Novo Testamento mais resumido. Os Evangelhos foram elaborados, lapidados, modificados. Outros aforismos de Jesus estão nos chamados apócrifos.”- Conceitos Religiosos,1976.
VIII – Respeito e compreensão para com outras expressões religiosas
O espírito aberto e tolerante, aliado ao fato de ser um profundo conhecedor das religiões, principalmente orientais, levou o pastor presbiteriano independente de São Paulo a considerar toda a expressão religiosa humana como nobre. Nenhuma seria detentora exclusiva da verdade:
“Há uma só religião. O que há é desenvolvimento da religião, evolução, transformação do sentimento religioso. Resta olhar com tolerância e simpatia para com as outras religiões que procuram interpretar a Deus e a consciência humana. O Bhagavada Gita traz esses aforismos de tolerância. Cap.VII: 20-23.” - Um Só Mundo, 1957.
“Nós falamos em religião imperfeita. É imperfeita a linguagem dos selvagens? Não. É imperfeita ao nosso ponto de vista, considerada pela cultura, mas ela serve ao supostamente primitivo para expressar sua ideia, o seu pensamento. A história da religião é um campo de cultura universal e permite ao estudioso apreciar a ideia de Deus no tempo e no espaço. Vêm-se religiões que tiveram a sua época, sua influência em determinados países e também sua decadência, ou melhor, a sua transformação e manifestação em outras ideias espirituais.” - Um Só Mundo, 1957.
“Todas as religiões gozam de uma inspiração verdadeira. Cada uma de suas Bíblias ocupa seu lugar em um grau determinante na escala das revelações divinas.” – Um Só Mundo,1957.
“Os chamados fundadores de religiões, como, entre outros, Buda, Zoroastro, Moisés, Maomé e Cristo, são intérpretes de Deus, revelando através da experiência e dependendo do grau de consciência divina de cada um. Mas,
Em tempos de fundamentalismo, seria bom que sua voz fosse ouvida e compreendida.Jesus Cristo, para mim, todo consciência de Deus, é diferente dos outros.” - Antologia de Estudos Religiosos,1979.
OBS : Nota sobre a tradução do Bhagavad Gita, publicada no sítio hindu brasileiro “ Vedanta”.